A saúde mental das crianças nunca esteve tão mal
Daniel J. Siegel é professor de psiquiatria na Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia, de Los Angeles (UCLA), onde fundou e é codirector do Mindful Awareness Research Center, e do Mindsight Institute. Formado na Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard, o Prof. Dr. Siegel é autor de vários bestsellers, alguns do New York Times. Disciplina Sem Dramas, Brainstorm, The Whole-Brain Child, Aware e de obras académicas como The Mindful Brain ou The Developing Mind, Showing Up, prestes a ser publicado, são exemplos.
Enquanto cientista que é, Siegel teve a oportunidade de partilhar pessoalmente, a conclusão de alguns dos seus estudos com personalidades como Dalai Lama, Papa João Paulo II, na Google University, na Goldie Hawn Foundation e no TEDx.
Escolheu Portugal para destino de férias, com a esposa Caroline Welch e amigos em comum. Encontrámo-nos na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, onde Siegel facilitou uma aula aberta, a convite da Professora Marcela Matos – do Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo Comportamental (Cineicc) – sobre como “Cultivar Presença e Estados de Consciência” na nossa vida. Falámos, sobretudo, de neurociência, parentalidade e mindfulness, prática de atenção plena que aprendeu com o seu amigo e colega Jon Kabat- Zinn, doutorado em microbiologia e Professor na Universidade de Massachusetts Medical Center (MIT).
O psiquiatra que acredita na epigenética, garante que vivemos tempos particularmente preocupantes, não só em termos de alterações climáticas, mas muitíssimo em termos de saúde mental, “seja individualmente, em grupo, a saúde mental das famílias, das escolas, organizações, governos”. Lembra por isso que “é urgente que se faça uma reflexão profunda acerca do percurso que temos vindo a percorrer e como deve ser alterado”. Com a humildade que o caracteriza, confessa que tem sido convidado para participar activamente em conferências de renome, sobre as alterações climáticas e que, se à primeira vista parece não ser a sua área, de repente está a contribuir, sobretudo depois de escutar que “tudo o que temos feito falha, Doutor Siegel, ajude-nos por favor, nós já aconselhámos as pessoas e não funcionou, já as assustámos e parece não terem medo, já não sabemos o que fazer mais!”. Siegel sente cada palavra, cada gesto, o campo e com um “optimismo realista”, como lhe chama, responde que “a única coisa a fazer é transformar profundamente a partir da visão de que todo este caos é uma oportunidade para que algo novo e melhor emerja.” Como? “Através da conexão! Promovendo a integração das diferenças.” O que é necessário saber acerca de um processo de mudança? “Que só acontece quando se opera ao nível do inconsciente!”, remata.
O Professor diz-nos que a vida deve ser vivida no presente e intencionalmente, com paciência e resiliência. Defende ainda, que “não conseguimos exercer a parentalidade com eficiência se o fizermos a partir do estado reactivo”. Não só não acredita em castigos, como alerta que os mesmos são uma violência e contraproducentes. Os castigos promovem a desconexão e, para Daniel Siegel, educar significar, conectar. “Só assim as crianças crescem empáticas, resilientes e cooperantes”, diz. Reforça também a teoria de que mente e corpo são um só e são também muito mais do que isso. Garante que “as crianças que enfrentam o mundo apenas com um ‘cérebro’ ficam dependentes da sua sorte e dos seus sentimentos. Ficam presas às suas emoções, incapazes de as alterar, queixando-se da sua realidade em vez de encontrarem formas saudáveis de lidar com ela. Ficam obsessivamente preocupadas, por enfrentarem algo novo ou cometerem um erro, em vez de tomarem decisões com abertura de espírito e curiosidade.”
Rita Aleluia: Arrisco começar esta nossa entrevista com um tema quente, que tem gerado muita controvérsia tanto no meio científico, quanto no meio do desenvolvimento pessoal, e que me parece ser essencial esclarecer. Qual é afinal, a diferença entre mente e cérebro?
Daniel Siegel: Se perguntarmos a muitas pessoas da neurociência, do campo da psicologia ou até da biologia, incluindo a medicina, eles dirão que a mente, tal como afirmou Hipócrates, é um comportamento. E, enquanto palavra, mente é um sinónimo de actividade cerebral, é uma escolha que a pessoa faz. Acredito que existem consequências sérias dessa forma de pensar. Portanto, no trabalho que eu faço, a forma como utilizo a palavra mente, está relacionada com a experiência subjectiva. O inconsciente, o processamento de informação, vê a mente como uma forma de incorporar o processo relacional que emerge do fluxo de energia, bem como o regresso e regulação do mesmo fluxo. A origem desse mesmo fluxo não emerge apenas do cérebro sozinho, assim como o impacto que gera na mente. Logo, deste ponto de vista, a mente é a experiência subjectiva, é consciência, é um processo de informação que emerge em forma de energia que pode ser simbólica, e é também um quarto processo, fruto de sistemas complexos que é a auto-organização que regula este fluxo de energia. Alguns neurocientistas concordam, como António Damásio e outros discordam totalmente. Como dizes, existe mesmo muita controvérsia à volta deste tema e há razões que vão além dos argumentos intelectuais, há aqui questões que colocam seriamente em causa 2500 anos de práticas médicas, e eu estou à vontade para dizer isto porque sou também físico. Afirmar-se que que a mente é apenas o que o cérebro produz, tem levado a que as sociedades modernas vivam na ilusão de que o “eu” vem apenas da mente e que está separado de todo o resto e já sabemos que essa forma de pensar está a conduzir à destruição da vida no Planeta.
A ciência também já demonstrou existirem uma mente cognitiva, uma mente cardíaca, uma mente somática, que estão interconectadas. Mais recentemente fala-se numa quarta mente, a mente de campo. Se nos lembrarmos que somos sub-sistemas de um sistema maior, ao qual a ciência chama “holon”, tudo isto faz sentido para si?
Quando vemos a mente como um processo emergente de energia e que essa mesma energia não encontra fronteiras na nossa pele, por exemplo, percebemos que o sistema do qual emerge a mente e a influencia é muito mais amplo do que todo o corpo. Alguns cientistas estudam o fenómeno em termos culturais, e falam de campos sociais, campos culturais e não lhe chamam necessariamente uma mente relacional. Tenho colegas do campo da neurociência social, que insistem em acreditar que a mente é só o cérebro. E que assim como o cérebro é sensível à luz, é também sensível aos sinais sociais. Estes cientistas não veem nenhum campo de energia ou de outra fonte e consideram que isso não é um pensamento científico. Eu não concordo com eles. O meu campo de trabalho, neurobiologia não é o mesmo que neurociência social, embora nem todos os neurobiólogos pensem da mesma forma que eu.
“É uma realidade triste e muito desafiante. A saúde mental das crianças nunca esteve tão mal.”
Qual é a sua percepção das famílias do século XXI, globalmente falando?
É algo muito doloroso de dizer, mas o que eu posso garantir é que, por exemplo, nos Estados Unidos as coisas não vão mesmo nada bem. Há cada vez mais depressões, ansiedade, suicídios, desespero. É uma realidade triste e muito desafiante. A saúde mental das crianças nunca esteve tão mal e não acontece só às crianças, acontece também aos adultos. Vejo acontecer com muitos colegas que são físicos. Uma situação que é, infelizmente, transversal a muitos outros países, não é um fenómeno exclusivo dos Estados Unidos.
“Temos que aprender e perceber que a relação com o próximo e com a natureza é o que nós somos.”
Como é possível transformar este padrão? Porque parece um padrão universal, certo?
Sim, é. Acredito que parte deste padrão de desespero que as pessoas estão a viver, está relacionado precisamente com o facto de verem a mente apenas como parte do cérebro e o “eu” parece viver apenas na cabeça, separado de algo muito maior. Temos que aprender e perceber que a relação com o próximo e com a natureza é o que nós somos. Temos também uma relação com o nosso corpo. Assim como temos relação com os nossos vizinhos, com pessoas que conhecemos menos bem, com as plantas, com os animais, as comunidades, a natureza e vai mais longe, porque somos parte de todo o Universo. Mas, por agora, a Terra é grande o suficiente, podemos focar-nos em lidar com tudo isto, neste momento, aqui, no Planeta (risos). A nossa relação pessoal com quem somos, pode tirar-nos da desconexão e do desespero, assim como do sentimento de não pertença. Eu acredito que a crença no “eu” separado do todo é a causa da desconexão e sentimento de não pertença, que por sua vez é a fonte de toda a incrível da depressão, ansiedade e suicido a que assistimos.
Enquanto pai que também é, estou curiosa para conhecer quais sãos os seus principais valores e crenças, que permitem que caminhe conscientemente ao lado dos seus dois filhos.
(Esboça um sorriso de amor maior antes de responder). Os meus filhos têm agora 25 e 30 anos, estão ambos a fazer coisas que emergem do sentimento de quem eles são na verdade, com a sensibilidade de que estão a cumprir os seus propósitos no mundo. Estou muito orgulho de cada um deles, à sua maneira, da forma como se conectaram com o meio ao seu redor, influenciando positivamente o mundo. São, de tantas formas, os meus professores. A minha mulher, Caroline, e eu, permitimos que cada um deles aprendesse a conhecer-se, através da nossa relação com eles e percebessem assim, que nas relações podemos emergir. Cresceram sempre com este sentimento de consciência interior, em relações que promovem conexão e que permitem a expansão de todos. Estes foram os nossos princípios fundamentais.
Esse é o segredo, permitir que as crianças sejam elas próprias?
(Sorri assertivo) No fundo é auxiliar as crianças a perceberem quem são, e quem podem vir a ser. Estando presentes para que elas sejam capazes de ultrapassar as desilusões e os fracassos, levando-as a escolherem uma vida plena de relacionamentos e com significado.
Como vê o impacto da nossa linguagem, das palavras que usamos, da forma como comunicamos verbalmente, na educação e vida das nossas crianças?
A mente humana tem uma sequência interessante. Presume que existem divisões no mundo às quais chama categorias, e constrói nesse processo não consciente, uma série de conceitos que nos levam a acreditar serem verdades e na parte submersa do icebergue, os nossos símbolos, as nossas palavras, tais como chamar um filho pelo nome. O risco disso parece inofensivo, mas se deixarmos a criança viver como se toda a sua identidade estiver nesse corpo, de alguma forma estamos a ensinar-lhe uma mentira. Porque ela está conectada com outras pessoas e interconectada com toda a natureza. Portanto, quem ela é, não é aquele nome singular, mas é mais como um verbo no plural. Há uma tentativa mundial, cultural, de nos fazer crer que somos apenas um nome. Às vezes, até as palavras positivas, podem, de forma não intencional criar problemas a uma criança. Uma criança que recebe palavras positivas que lhe dizem, por exemplo, “és tão inteligente, és tão bonito, és um jogador incrível” … embora pareçam palavras inócuas, são na verdade, a fonte de criação, na criança, de um sentimento de recompensa pelas suas conquistas em vez de um olhar atento ao seu esforço. Portanto, uma criança que cresce a ouvir palavras positivas por aquilo que produz, em vez de um reforço àquilo que é mesmo importante, com significado para ela, vê o seu sistema de valores e a estratégia que utiliza para tomar decisões, basear-se em recompensas. Em vez de produzirem estados positivos, as palavras que sempre ouviu criam o oposto, estados negativos e colocam-na numa prisão.
Quando uma criança mostra um desenho a um adulto e pede a sua opinião, muitos pais e educadores tendem a dizer-lhe que “é lindo, é maravilhoso”, mesmo quando veem apenas rabiscos…
Sim, dizem que é um Picasso! (Risos)
Podemos optar por perguntar à criança como fez para escolher as cores que utilizou, qual o significado do desenho, a intenção…. Criando espaço para que possa comunicar verbalmente a sua criatividade, possa exprimir emoções, desejos e necessidades?
Exactamente, Rita! Há que reconhecer a experiência da criança, não o produto dessa experiência. E então, ajudá-la a explorar essa experiência, tal e qual como mencionaste. “Usaste encarnado, aqui, que cor tão interessante para uma árvore!” “E o azul aqui, uau, que curioso, o que sentiste quando usaste esta cor? Deve ser fascinante!” Sem fazer perguntas que a leve a duvidar dela mesma, mas mostrando interesse nas suas escolhas e experiências internas. Chamamos a isso ‘mindsight’, visão mental, que é uma forma de descrever a capacidade humana de perceber a mente, a minha e a do outro. É uma lente poderosa através da qual podemos entender a nossa vida interior com mais clareza, integrar o cérebro e melhorar o nosso relacionamento com os outros.
E de criança a adolescente é um voo tão rápido. A adolescência ainda é um “bicho papão” em muitas sociedades. Esta é uma visão redutora deste marco importante da vida humana…
É urgente mudar a maneira de olhar para a adolescência. Ela não é um período de loucura ou de imaturidade. É sim, a essência de quem deveremos ser, do que somos capazes e em que nos tornamos humanos de maneira plena.
“A nossa sobrevivência individual e social depende da coragem dos mais novos.”
Sabemos que não somos os nossos comportamentos e que estes são sempre o melhor que podemos ter naquele momento. Ainda assim, quando falamos da adolescência, parece que este é um pressuposto que cai por terra…
Todos os comportamentos originados pelas mudanças cerebrais, como a impulsividade, a rebeldia, são necessários para que os jovens se libertem do seu círculo familiar e conheçam o mundo. É desta forma que conquistam a coragem necessária para mudar, partir e procurar inovação. Até porque, o lar é confortável e é previsível, já o mundo está cheio de ratoeiras e de surpresas. Há uma visão evolutiva que garante que, se os jovens não saíssem de casa e se não se separassem do seu grupo originário, a nossa espécie teria uma grande probabilidade de se reproduzir entre si, o que seria geneticamente nocivo para as gerações vindouras. A nossa sobrevivência individual e social depende da coragem dos mais novos.
“É importante utilizar práticas conscientes que nos permitam libertar a mente das expectativas.”
Que conselho quer deixar aos pais, em geral?
É apenas um e muito simples: ‘showing up’ (aparecer)! Estarem presentes! Se reduzirmos numa frase, as muitas pesquisas sobre as melhores propostas parentais, surge: presença parental! Temos uma série de filtros que tornam difícil este ‘show up’, aparecer, tais como crenças acerca de como devem ser os filhos, passar demasiado tempo em frente a ecrãs digitais, ocupar-se com o que não é essencial… É fundamental utilizar práticas conscientes que nos permitam libertar a mente das expectativas.
“Mindfulness, Heartfulness e Kindfulness significam exactamente a mesma coisa.”
Nessas práticas conscientes, e de acordo com o seu trabalho mais recente, descrito no delicioso livro “Aware”, inclui-se também o Mindfulness, a atenção plena. Noto que tem surgido no mercado global, nos últimos tempos, além do nome Mindfulness, o nome Heartfulness e Kindfulness. Estamos a falar da mesma coisa, ou nem por isso?
Mindfulness, Heratfulness e Kindfulness são apenas palavas. Então, o ideal é perguntar a quem usa cada uma dessas palavras, o que quer dizer quando a aplica. Digo isto porque, uma vez, numa reunião de líderes mundiais na investigação de Mindfulness, numa altura em que eu estava precisamente a investigar o que significava cada um desses termos, para colocar nesse meu livro (Aware), vi acontecer algo muito interessante. Propus aos investigadores que utilizássemos apenas uma palavra para designar tudo. Metade concordou, a outra pessoa respondeu efusivamente “nem pensar!”. Então, perguntei: “O que significa Mindfulness para ti?” e um respondeu: “Para mim, significa treinar o foco na atenção e voltares a ti quando te distrais. Assim amplias a consciência e não és apanhado por algo que possa desconcentrar-te.” Já no caso do Heartfulness e do Kindfulness, falamos de contruir uma intenção e atitude generosas, falamos de compaixão, de amor. E, portanto, a outra metade dos investigadores, discordava da primeira e garantia que é preciso ensinar as pessoas a serem generosas, amorosas, a exercerem a compaixão. Esse grupo defende que Mindfulness inclui essas qualidades. Algo que o primeiro grupo discorda. Ainda assim, alguns elementos desse primeiro grupo, lembram que o facto de ser consciente já inclui ser generoso e amoroso. E na verdade, se observarmos a designação asiática para Mindfulness e Heartfulness, são idênticas. Porque muitas destas práticas emergem da Índia, Sul da Ásia, China e Japão. Aliás, na China, demonstram categorigamente que Mindfulness e Heartfulness significam exactamente a mesma coisa. Kindfulness é apenas uma palavra, em inglês, que nós inventamos que quer dizer o mesmo. Pessoalmente, não vejo diferença alguma entre as três palavras.
Esta entrevista foi originalmente publicada na Revista D7, do Diário de Notícias M